sábado, 15 de abril de 2017

Sobre o Crime e o Castigo



Então, um dos juízes da cidade avançou e disse, Fala-nos do Crime
e do Castigo.

E ele respondeu, dizendo;
É quando o vosso espírito vagueia pelo vento que vós, solitários e indefesos,
fazeis mal aos outros e também a vós mesmos.
E pelo mal que fazeis devereis bater à porta dos abençoados e esperar.
O vosso eu interior é como o oceano;
Permanece para sempre imaculado.
E, tal como o etéreo, só ergue os seres alados.
O vosso eu interior é como o sol;
Não conhece os esconderijos da toupeira nem procura as tocas da serpente.
Mas o vosso eu interior não habita sozinho dentro de vós.
Muito em vós ainda é humano, e muito não o é.
Mas um pigmeu disforme que caminha sonâmbulo no nevoeiro à procura do
seu próprio despertar.
E é do homem em vós que agora irei falar.
Pois é ele e não o vosso eu interior, nem o pigmeu no nevoeiro que conhece o
crime e o castigo do crime.

Muitas vezes vos ouvi falar daquele que comete um crime como se não fosse
um de vós mas um intruso no vosso mundo.
Mas digo-vos que, tal como os santos e os justos não se podem erguer mais
alto do que o mais alto que existe em cada um de vós, também os maus e os
fracos não podem cair mais baixo do que o mais baixo que existe em vós.
E tal como uma simples folha só amarelece em conjunto com toda a árvore,
Também aquele que comete um crime não o pode fazer sem a anuência
secreta de todos vós.

Como numa procissão, caminhais juntos em direção ao vosso eu interior.
Vós sois o caminho e os caminhante e quando um de vós cai, cai por aqueles
que vêm atrás, para os avisar da pedra que encontraram no caminho.
E cai por aqueles que vão à sua frente, que, embora mais rápidos e seguros,
não estão livres de tropeçarem na mesma pedra.
E notai que, embora a palavra vos pese no coração:
O assassinado não está isento de responsabilidade pelo seu próprio
assassínio, e o roubado não está isento de culpas por o ter sido.
O justo não está inocente dos feitos do malvado, e o que tem as mãos limpas
não está limpo dos atos do culpado.
Sim, o culpado é por vezes vítima do ofendido.
E ainda mais vezes é o portador do fardo dos inocentes e retos.
Não podeis separar o justo do injusto e o bom do mau;
Pois eles andam juntos ante a luz do sol, tal como juntos são tecidos os fios
brancos e negros
E quando o fio negro quebra, o tecelão examina todo o tecido e também todo
o tear.

Se algum de vós trouxer a julgamento a mulher infiel, que também pese o
coração do marido e meça a sua alma.
E que aquele que quiser flagelar o ofensor olhe para o espírito do ofendido.
E se algum dá vós punir em nome do que é justo e cortar com o machado a
árvore do mal, deixe então que se vejam as raízes;
E encontrará as raízes do bom e do mau, do que dá frutos e do que não dá,
entrelaçadas no coração silencioso da terra.

E vós, juízes, que quereis ser justos, que condenação ireis dar àquele que,
embora honesto de corpo, é um ladrão de espírito?
Que castigo ireis dar àquele que flagela a carne e também flagela o espírito?
Como procedereis com aquele que nos seus atos é falso e opressor, mas que,
no entanto, é também enganado e oprimido?
E como ireis punir aqueles cujos remorsos são maiores do que os crimes que
cometeram?
Não será o remorso a justiça que é administrada pela própria lei que quereis
servir?

No entanto, não podereis impor o remorso ao inocente, nem arrancá-lo do
coração do culpado.
Subitamente, à noite, ele convocará os homens para que olhem para si
próprios.
E vós, que deveis entender a justiça, como o podereis fazer a menos que
olheis para os factos à plena luz?
Só assim sabereis que o ereto e o caído são um único homem no crepúsculo
entre a noite da sua pequenez e o dia da sua espiritualidade, e que a pedra mãe
do templo não é mais alta que a mais funda pedra dos seus alicerces.


Gibran Kahlil Gibran

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