Todas as coisas que existem no
mundo são ferramentas. Como tais, têm polaridade neutra. O uso destinado a elas
determina se serão positivas ou negativas. É o mau uso que caracteriza o abuso.
Contudo, nada se perde, apenas se torna lição mais rigorosa para alunos
indisciplinados. O mundo é uma escola formadora de
grandes mestres, onde todos, cada qual ao seu tempo, serão diplomados. O
dinheiro, o poder político e a beleza física são alguns dos exemplos clássicos
dessas ferramentas. Nos dias atuais, o mesmo também ocorre com as denominadas
redes sociais. Embora alguns indivíduos abusem dela para disseminar mentiras e
intrigas, a internet é um maravilhoso instrumento disponibilizado à humanidade
nas últimas décadas. O acesso à informação e ao conhecimento se intensificou e
tem se socializado. As pessoas podem se comunicar mais e melhor, ficarem mais
íntimas, se encontrarem, ajudarem, olharem e, principalmente, se entenderem.
Todos poderão ter voz e o mundo, então, irá nos juntar em um mesmo abraço.
Claro, a internet não abraça, apenas marca o encontro. Cabe a cada indivíduo
abrir os braços e o coração. Eu pensava nisso durante a reunião promovida para
comemorar os trinta anos de formatura da minha turma. Colegas que não se viam
nem se encontravam desde o final da faculdade, voltaram a ter a oportunidade de
se abraçar, rir das velhas piadas, relembrar de antigos fatos e se atualizarem
quantos às suas trajetórias. Muitas diferenças e mágoas foram desmanchadas, não
pelo tempo, mas através dele. Tínhamos evoluído, cada um no compasso dos
próprios passos, e podíamos compreender a desnecessidade dos ressentimentos.
Contudo, é normal que sempre restem arestas. Uns se tornaram profissionais
competentes, alguns ficaram famosos. Embora muitos confundam, são situações
distintas. Outros poucos abandonaram a carreira em razão de diferentes dons e
sonhos distintos. Eu era um destes.
O encontro tinha sido organizado pelo Eduardo. Fiquei
incomodado quando, em determinado momento da festa, ele foi homenageado por um
pequeno grupo de colegas. Ele demonstrou uma surpresa que não me pareceu
sincera. Todos sabiam que ele era dono de uma empresa que prestava serviço e
vendia produtos a diversas prefeituras espalhadas por todo o país. Tinha
acumulado uma enorme fortuna. Nenhum problema até este ponto, salvo que esse
pequeno grupo tinha estreitas relações profissionais e comerciais com o
Eduardo. Eu poderia achar a homenagem simplesmente grotesca e encerrar o
assunto dentro de mim. Contudo, tínhamos sido amigos bem próximos durante a
faculdade, quando me afastei dele por causa de algumas características do seu
comportamento. Ora, eu também tinha cometido muitos erros durante a minha
trajetória, precisei de bastante ajuste quanto ao meu caráter e direcionamento
ético. Ninguém chega ao mundo pronto. Na época, ele também tinha ficado
chateado comigo.
Passaram-se trinta anos. Ninguém era mais o mesmo.
Tínhamos mudado e evoluído. Assistir àquela homenagem poderia ter sido um ato
cômico, mas trouxe amargura. Em silêncio, sem qualquer comentário, me restara a
sensação de que para algumas pessoas as mudanças eram somente mundo afora,
nenhuma transformação tinha ocorrido universo adentro. Sentado em um canto do
salão, sem me dar conta, eu fazia um julgamento. Pior, colocava no prato da
balança as experiências desastrosas que eu vivera ao lado desse colega,
memórias de tristes lembranças, além de algumas frustações e outras sombras,
das quais sofremos, mas não percebemos a influência. Em momentos assim, a
balança inevitavelmente restará desequilibrada. As sombras mais perigosas são
aquelas que acredito já pacificadas.
Como se não bastasse, logo depois, esse colega,
acompanhado da esposa, uma moça bem mais jovem e muito bonita, se sentou ao meu
lado e fez questão de comentar sobre o recente fechamento da minha agência de
publicidade: “Fiquei triste quando recebi a notícia da falência”, sibilou um
falso consolo. Notei um discreto sorriso entre as suas palavras. Não foi
difícil perceber que as diferenças do passado ainda não estavam resolvidas.
Surpreso, e sem saber o que falar, fiquei em silêncio. Em seguida, ele mostrou
a placa comemorativa que acabara de ganhar e, com clara intenção de me
provocar. Evidente pelo sarcasmo em seu tom de voz, falou que eu seria o
homenageado no próximo encontro. Como se dissesse para eu não ficar com inveja
dele. Em seguida, pediu para a esposa me mostrar as fotos da sua nova mansão e
do iate que havia comprado recentemente. Sempre ressaltando que nada daquilo
tinha valor para ele: “O importante na vida são as amizades”. Ora, por que
mostrar, então? Qual fragilidade ele precisava ocultar ao se autopromover e
ostentar um patrimônio tão robusto? Tudo que evidenciamos, no fundo, é um
escudo levantado na tentativa de nos proteger de algum medo. Elogiei as suas
aquisições, mais por polidez do que admiração.
O medo tem uma cadeia alimentar própria. Pela força
que furta, o medo nutre secretamente as demais sombras pela sensação de
vulnerabilidade que provoca.
Menos de uma hora depois, todos foram embora com a
promessa de tornar a nos reunir no ano seguinte. Confesso que, embora não
desejasse nada do que havia na vida dele, algo me deixara desconfortável. Se eu
me permitira ser atingido, tinha alguma coisa fora do lugar dentro de mim.
O Eduardo era o Eduardo e eu nada podia fazer quanto a
isto, salvo estabelecer limites para não haver abusos. Quanto a mim, mil
transformações estavam à minha disposição.
Passado vários meses, chegou um convite. Esse colega
convidara toda a turma para um jantar. Comunicara que, daquela vez, eu seria o
homenageado. Eu deveria fazer um discurso de agradecimento. Em razão do
costume, esperavam que eu, além de ressaltar o fato de estarmos reunidos e a
amizade que unia a turma, falasse também sobre a minha trajetória, das vitórias
profissionais e conquistas pessoais. Ora, a minha agência cerrara as portas
recentemente. Eu ainda digeria o impacto das transformações. Sinal de fracasso
para muitos, mudança de ciclo e evolução para outros. Embora não admitisse,
estava sendo difícil para mim. Adaptabilidade é uma virtude importante pela
serenidade e equilíbrio que traz. Quando acreditamos que conseguimos avançar, a
vida testa a firmeza dos nossos passos e, se for o caso, nos faz tropeçar para
ensinar a caminhar diferente e melhor. Entretanto, tudo parece mais difícil quando
é conosco.
Tornei a me irritar. As diferenças do passado estavam
vivas. Não restava dúvida que ele me convocava à guerra e deixara definido o
campo de batalha: as conquistas materiais e as homenagens do mundo, pois sabia
que eu não seria um adversário à altura dele. De outro lado, eu sabia que, ao
me abalar com a provocação, como tinha acontecido, a guerra já me fazia um
perdedor.
Pensei em declinar do convite com uma boa desculpa
inventada. Não seria honesto com muitos colegas pelos quais eu tinha apreço. Ao
me esconder da turma pelo fato de não possuir um patrimônio invejável como o
dele, eu não seria sincero com os meus princípios de dignidade. Se eu não fosse
ao encontro, em verdade, seria uma mera fuga para não macular o meu orgulho.
Seria uma escolha orientada pelas minhas sombras, pois estaria centrada em
valores contrários aos princípios que me orientavam.
Em casa, sentado na minha poltrona, coloquei uma
música suave, me municiei com uma caneca de café e comecei a pensar. Por que eu
me irritei? Por qual razão eu o julgara ao invés de apenas observar os fatos e
seguir a jornada, uma vez que a vida dos outros não deve influenciar a minha?
Será que eu sentia inveja? Era vaidade? Do que eu tinha medo? Por que o orgulho
se fazia tão presente? Eu precisava destas respostas.
Muitas das ideias que estão em nossas mentes, não
fomos nós que as criamos, mas em razão de terem sido inseridas por repetição
sociocultural. Internamente, as reverenciamos, segregamos e decidimos através
delas sem nos questionar a sua origem. Embora neguemos muitas dessas ideias
para nós mesmos, nas conversas com os amigos e nos discursos que usamos para
montar o personagem que vivemos, ainda não conseguimos nos descolar delas. Até
o dia em que percebemos o sofrimento que nos causam. Nenhuma boa ideia é origem
de qualquer sofrimento, mas de alegria pelo avanço e leveza que provocam.
Todos os relacionamentos precisam de limites para se
manterem saudáveis. Quando o jeito de ser e viver de outra pessoa me incomoda,
significa que autorizei a sua invasão no espaço sagrado da minha individuação.
Uma influência indevida que necessita de realocação em mim para que o
sofrimento ou incômodo cesse. Quando não consigo é claro sinal de alguma
contradição interna entre princípios e valores.
Enquanto eu repetir que os princípios que me guiam são
o amor, a liberdade, a dignidade, a paz e a felicidade, mas buscar por eles nas
glórias e homenagens do mundo, com os seus estonteantes efeitos especiais,
ficarei distante do encontro primordial. Uma contradição muito comum nascida do
medo. O paradoxo de procurar nas palmas da plateia aquilo que somente
encontrarei na quietude do camarim surge quando deixo de acreditar na minha
luz. Neste momento crio o vazio. Se não o preencho, pelo redirecionamento de
rota em minhas buscas, ou o desfaço, pelo entendimento de sua desnecessidade, o
vazio se alastra e o sofrimento aumenta à proporção da escuridão que me invade.
Estamos acostumados a viver pelo gran finale, pelo
encontro estonteante, pelo momento de gala da vitória arrebatadora, do mundo
ajoelhado aos nossos pés. Casos em que o vazio se avoluma em abismo e toda a
reverência nos parecerá sempre pouca. Ficamos aflitos por mais e depois ainda
mais, pois vivemos o personagem daquele que vence a todos, menos a si próprio.
Queremos ser amados, mas nos comportamos para ser desejados. Gritamos que
precisamos de amor, mas vivemos atrás de emoções. Somos o lutador que nocauteia
os adversários, veste o cinturão destinado aos campeões e vai à lona quando os
holofotes da arena se apagam. Somos engolidos pela escuridão que criamos.
Vivemos pelo efêmero construído de cimento e concreto. Do fato que se desmancha
no ato seguinte. Não percebemos que os pilares que sustentam a estrutura da
vida, a consciência e as virtudes, são imateriais. A riqueza da vida não se
toca com as mãos.
Recusamos a vida, embora ela nos permeie por todo o
tempo. Ninguém verá o amor enquanto estiver de costas para si mesmo. Esquecemos
que qualquer vitória é somente a que cabe no coração. Vivemos pela casca
enfeitada de purpurina que, vazia de conteúdo, se torna frágil ao ponto de se
quebrar com uma leve pressão. Nem tudo que reluz é luz. Vivemos pela idolatria
aos deuses da fama e às mentiras que repetimos a nós mesmos. Do culto ao
sucesso sem nada entender sobre quais conquistas deveríamos reverenciar no
altar da vida. Da teimosia de querer mais do menos e mais do mesmo. Impomos
fronteiras estreitas por não entender a liberdade. Desprezamos o dom e o sonho.
Temos medo de nos tornar quem somos. Acordamos todos os dias esperando pelo dia
que nunca vai chegar. O dia é hoje, a hora é agora, o lugar é aqui, as
condições são as que tenho e elas sempre serão adequadas. Olhamos sempre para o
chão em desprezo às estrelas. Abismos se erguem porque os criamos. Exigimos que
se construam pontes ao invés de deixarmos crescer as asas. Continuamos a olhar
somente para o chão. Para evitar riscos, críticas e recriminações, seguimos as
marcas deixadas pelos passos alheios, repetimos trajetórias que não são nossas,
falamos sobre quem nunca fomos. Ninguém caminha sendo outro além de si mesmo.
Ninguém chega o mundo antes de encontrar consigo.
Tudo começa ou termina com uma ideia. Qualquer ideia é
uma semente capaz de germinar em trevas ou em luz, ódio ou amor, doença ou
cura, prisão ou liberdade, amargura ou dignidade, aflição ou paz, sofrimento ou
felicidade. Uma ideia é uma cápsula de vida ou a ausência dela. As ideias são
autênticas fórmulas alquímicas pelo poder de transformação que contêm.
Não tenho como fugir de mim mesmo. Eu irei me acompanhar
até o mais longínquo dos esconderijos. Posso me negar a viver no mundo, evitar
a me tornar quem eu sou, fechar a porta, entrar debaixo do cobertor, fechar os
olhos, tapar os ouvidos, gritar que tudo é mentira. Mesmo assim, continuarei em
mim, à minha espera.
Estar à espera é viver como semente. Para germinar?
Basta uma ideia e uma vontade. Assim nascem a espada e o guerreiro.
Eu me envergonhava de a agência ter falido quando os
principais funcionários decidiram por montar os seus próprios negócios. Um
direito legítimo deles e justo em respeito a liberdade e dignidade de todos.
Inclusive a minha. Eu sou a luz mundo. Contudo, teoria e prática ainda não se
encaixavam. Embora entendesse sobre a importância dos ciclos evolutivos,
restava em mim o ranço de me olhar como um fracassado pelo fechamento da
empresa. Esta era a verdade que eu não admitia e, por isto, sofria. Eu olhava
para o chão. O que agigantava o colega que me desafiava, não eram as suas
conquistas patrimoniais e financeiras, que eu entendia como transitórias, era
que no íntimo, ainda que as negasse, eu também me norteava por elas. Apesar dos
meus princípios distintos, eu os procurava em valores onde jamais os
encontraria. Esta contradição era a raiz do meu desconforto pela fragilidade
que me causava.
Era preciso entender qual luta eu deveria travar. O
combate não era contra o Eduardo, mas dentro de mim. O meu problema não era o
Eduardo, assim como nunca será qualquer outra pessoa. A batalha está onde estão
o inferno e o céu da existência: no âmago do meu ser.
Somos mais incoerentes do que gostamos de admitir. A
razão é que sabemos mais do que somos. Quando não percebemos ou admitimos esse
descompasso entre o saber e o ser, entre a alma e o ego, o vazio se forma. Mas
isto, apesar do sofrimento que causa, não é todo ruim. O vazio, quando bem
aproveitado, se torna o espaço indispensável à criação de quem ainda não sou.
Depois das destruições provocadas pelo caos, surge o
vazio. Ao ordená-lo, iniciamos um novo ciclo evolutivo. Por etapas, aprendemos
(agregamos o conhecimento à consciência), transmutamos (a consciência
transforma o conhecimento em virtude), compartilhamos (a virtude passa a ser
parte essencial das escolhas) e seguimos (a viagem não tem fim).
A falência da agência de publicidade, que apesar de
conquistar alguns prêmios pela excelência de alguns trabalhos realizados,
sucumbira à força dos ciclos evolutivos (era o caos com a sua força
renovadora). Fato que coincidira com o início da minha atividade como editor (a
ordenação do vazio para a criação). Contudo, a editora ainda engatinhava e,
incipiente, nem de longe tinha o glamour que a agência tivera no passado.
Embora não devesse, era algo que me incomodava. Logo, precisava de superação.
Ser pequeno não significa fraqueza. A humildade é a
lucidez daqueles que conhecem as suas verdadeiras dimensões e entendem a
necessidade da evolução. A compaixão é a lucidez daqueles que enxergam nas
dificuldades as ferramentas ideais para o seu crescimento. Por isto, abandonam
a prepotência e a arrogância, reflexos do orgulho e da vaidade. São gentis e
generosos consigo e com todos. Por conhecerem a si são verdadeiramente fortes.
O orgulho é o medo que descubram que eu não sou o
maior nem o melhor dos homens; a inveja é o medo de ver outras pessoas se
sentirem maiores e melhores do que eu; a ganância é o medo de não acreditar que
o amor será suficiente para me manter forte; o ciúme é o medo de alguém não me
achar bom o suficiente para ficar ao seu lado. Onde nascem essas emoções tão
insalubres?
Sim, do medo. Por que sinto tais medos? Por não
abraçar os valores que me mantêm sob o eixo dos princípios que acredito. Busco
a felicidade no lugar onde ela nunca esteve, confundo dignidade com orgulho, a
paz com o ócio, liberdade com falta de compromisso e o amor que recebo como se
fosse o amor que tenho. Quando longe do coração, estarei distante de mim.
Enfraqueço e sofro. O coração é o ponto de encontro onde o ego, conduzido pela
consciência, se encanta e se casa com a alma.
Naquele momento me ocorreu uma ideia. Todos os dias
são bons para morrer e, então, perfeitos para renascer. Era hora de deixar a
força da essência rasgar a pele da aparência. Fiz uma escolha.
“É preciso ficar nu para se sentir bem vestido”. Esta
foi a frase com a qual abri o discurso durante o jantar. Em seguida, dissequei
o maior dos meus fantasmas naquele momento, a falência. Depois elenquei os meus
muitos fracassos, tropeços e equívocos. Era o enfrentamento necessário: eu
comigo mesmo, sem o qual ninguém consegue se abraçar. Contudo, tive o cuidado
de mostrar como cada um deles me impulsionou à valiosas transformações. Como os
reveses da existência foram imprescindíveis para que eu não me tornasse o
monstro que, provavelmente seria, se apenas fosse agraciado com vitórias.
Também foram importantes para me mostrarem o avesso de quem eu acreditava ser
no passado. Na face de quem eu não era estava a melhor parte de quem eu podia
me tornar.
Ressaltei que nada havia de errado com as vitórias,
elas eram reconfortantes e mereciam as devidas comemorações. Todavia, os
mestres navegam pelos mares do fracasso. Nas tempestades oferecem novos mapas e
orientam as mudanças de rumos. Não são as vitórias, mas os fracassos que nos
mostram a rota às estrelas. Existe muito brilho nas vitórias e muita luz nas
derrotas: “Desde que você as envolva com amor, é claro”.
“Entendo, agora, que a vitória se traduz em cada
gesto, palavra e escolha que me permite viver o amor, ser livre, digno e
abraçar a paz. Apenas assim consigo ser feliz. Como me ensinou um xamã, esse é
o meu verdadeiro patrimônio por caber por inteiro, em minha sacola sagrada, o
coração. Quem ensinou isto a ele foram as derrotas”.
Calei-me sobre alguns prêmios ganhos pela agência em
festivais de publicidade. Embora tivessem me alegrado no instante da conquista,
não me transformaram nem me fizeram um homem melhor. Não era um exercício de
humildade, mas de sinceridade, por entender que pouco, ou mesmo nada, valiam.
Representavam opiniões de algumas pessoas que todos os anos se reuniam para se
premiarem, arvoradas em conceitos e interesses próprios. Eram apenas homenagens
do mundo, não eram fatos que alavancaram as transmutações da minha alma. Por
ironia da vida, ou como sábia lição, os troféus e medalhas tinham sido levados
na enxurrada de uma enchente havia alguns anos. Assim como a agência fora
varrida pela onda dos ciclos que se renovam. Aprendi, da maneira mais difícil,
que não eram importantes porque não faziam falta. Eu tinha a mim mesmo. Isto é
um poder verdadeiro. Eu caminhava, todos os dias, com o firme propósito de
chegar ao meu coração. Isto é uma riqueza verdadeira.
Falei sobre como o nascimento das minhas filhas
trouxera mudanças muito significativas na minha vida, por me fazer conhecer o
amor em um nível, até então, desconhecido. Elas me mostraram que a lei maior de
“amar a todos como a si mesmo”, embora ainda bem distante para mim, era
possível e não apenas um aforismo literário e onírico. Com elas, eu aprendera
muito sobre como a entrega, o comprometimento e a dedicação são gratificantes.
Aqueles que opuseram dificuldades à minha trajetória
também eram merecedores do meu afeto, pois me ensinaram o valor da superação e
do aprimoramento. Despertaram-me habilidades e virtudes adormecidas.
Recordei de vários fatos aparentemente banais, como
uma vez em que persegui outro motorista por ter levado uma fechada no trânsito.
Quando o meu carro emparelhou com o dele em um sinal fechado, eu o olhei
enfurecido e desafiador. Ele, com um olhar misericordioso, fez o sinal da cruz
como se estivesse diante de um demônio. E estava. É um erro pensar que o
inferno está nos outros. Por nunca mais desejar receber um igual e merecido
olhar, passei a tomar cuidado para não mais reagir daquela maneira às minhas
emoções densas. As reações, por serem espontâneas, nos traduzem com maior
perfeição do que as ações. Aquele gesto simples me ensinou a necessidade de
começar a educar e pacificar as sombras que me compunham. “Entendem que naquele
carro havia um mestre? Eles não costumam frequentar os bailes de gala nem
eventos solenes. É mais comum esbarrar com eles nas ruas movimentadas, por trás
dos balcões nos mercados, nas filas dos ônibus, nos trens e, também, dentro de
nós. Claro, quando estamos dispostos a conversar com eles”.
“Todo o universo cabe em um simples gesto de amor.
Cada vez que resgato uma parte da minha alma, salvo um pedaço do mundo para ser
vivido dentro e fora de mim. Fora disto, tudo é ilusão. A minha história, ao
menos os capítulos que merecem destaque, se resume nos fatos que me
transformaram em um homem melhor. Todos aconteceram em dias difíceis e sem
qualquer solenidade. As conquistas verdadeiras não se traduziram em troféus,
mas em leveza”.
Ao terminar recebi os aplausos de praxe e sem qualquer
entusiasmo. A maioria entendia que, ao ficar nu, eu inventara uma falsa beleza
para maquiar as minhas derrotas. Viam um homem com um discurso humanista e
espiritualizado na tentativa de esconder as suas frustações, decepções e
fracassos. Alguns poucos enxergavam a sofisticação da simplicidade e a
elegância da sinceridade, a verdade pela nudez da alma. Eu me sentia bonito
como somos todos quando abrimos o coração sem medo. Com o coração fechado ou
escondido, nem mesmo o próprio dono conhecerá a extensão do seu conteúdo. O melhor
restará perdido.
O mais importante, era a maravilhosa sensação de paz
pelo medo dissolvido. Viver a verdade sem subterfúgios é libertador. Devolve a
dignidade perdida; um gesto de amor-próprio. Eu estava extremamente feliz por
me permitir ser quem eu era.
Embora muitos naquela reunião desprezassem o meu
discurso, por considerá-lo escapista, eu estava alegre por conquistar uma
pequena vitória sobre esse dragão devorador de vidas. Eu o enfrentei, não pelas
regras do mundo, mas pelas leis da luz. Precisamos chegar no cárcere do medo,
entender a razão pela qual ele nos domina e aprisiona. Depois, nos libertar.
Quando deixamos de alimentar o medo pelas ilusões e condicionamentos ancestrais
que o valorizam, ele se desmancha por inanição até mostrar a sua face e tamanho
reais. O monstro assustador, que rouba a calma e o sono, se torna um brinquedo
de criança. Guarde-o com carinho para tê-lo sempre como lembrança e lição. Eles
ajudam a contar algumas das melhores páginas da nossa história.
Não me importavam os comentários. Ao final, e em
verdade, tudo sempre será entre mim e o meu coração. Tudo mais é paisagem.
A noite não tinha acabado. Sem muita demora, o Eduardo
se sentou ao meu lado. Estávamos sozinhos em uma mesa. Ele me perguntou se eu
realmente acreditava nas palavras que proferira. Respondi não ter a menor
dúvida. Expliquei: “Não tive a vida desejada, mas tenho uma existência
perfeita. Não quanto às escolhas que fiz, pois cometi muitos erros, mas em
relação às transformações alcançadas. Outras tantas me foram oferecidas, porém,
eu não estava pronto para elas”.
“Nos acertos que tive consegui as exatas correções de
rota, imprescindíveis às verdadeiras conquistas oferecidas pela vida. Sou grato
por ela não desistir de me transformar em um homem diferente e melhor.
Desperdicei muitas oportunidades, aproveitei algumas outras. Aprendi sobre os
dons e os sonhos. Sofri muito, mesmo quando achei que estava no topo do mundo.
Até o dia que entendi que apenas o amor dissolve a dor. Descobri as virtudes e
a necessidade infinita de me conhecer profundamente. Já quis ser um herói, já
quis ser famoso, já quis ser rico. Hoje quero apenas me entender mais e amar
melhor”.
Eduardo ficou calado por alguns segundos. Era nítida a
sua dúvida por abrir ou não o seu coração. Até que sucumbiu e, com os olhos
marejados, confessou que sofria muito. Contou que quando menino passara fome.
Tinha prometido a si mesmo que ficaria rico antes dos trinta anos, para que a
sua saúde permitisse a ele usufruir tudo de bom que havia no mundo. De fato, se
tornara milionário ainda muito jovem. Não medira esforços para alcançar o
objetivo. “Fiz de tudo”, murmurou como se fosse um segredo.
Apesar de ter acesso ao luxo do mundo, no fundo,
achava a sua vida muito triste. A sua esposa, mãe dos seus filhos, com a qual
se casara por amor, não suportou viver ao seu lado e partiu. Não fez questão de
pensão nem de repartir o patrimônio. Apenas quis ir embora. Os seus filhos
cresceram distantes dele. Não consegue uma convivência harmoniosa com os
rapazes. Nenhum deles quis trabalhar em sua empresa, embora tenha insistido
para isto. Declarou que seu enorme patrimônio não é capaz de preencher a
sensação de vazio que sente: “Quando vejo alguém sem nada que parece ter tudo
para viver, sou tomado por enorme irritação, como se estivesse diante de um
idiota”. Fez uma pausa para concluir: “Ou é como se ele me mostrasse que o
idiota sou eu. Fico desorientado”.
Com o olhar distante, comentou: “Tudo que tenho parece
me engolir. Nada consegue manter a minha satisfação até o dia seguinte. Tenho
pesadelos nos quais os números pulam, em suicídio, do alto arranha-céus como
para dizer que a matemática é uma mentira que contamos ao coração. Equações
constroem prédios, jamais escrevem uma vida”.
“Venci, mas nada ganhei. Tenho um monte de gente ao
meu lado. São simpáticos e capazes de qualquer coisa para me agradar, mas estou
só e abandonado. Sinto falta do aconchego de um abraço sincero, da alegria que
resplandece de um sorriso, da infinitude da vida que existe em um olhar com
amor”.
Ficamos incontáveis minutos sem dizer palavra. Não era
preciso acrescentar nada ao que ele sabia. Ele quebrou o silêncio para
agradecer o meu discurso: “Abriu os meus olhos”. Neguei. Eu não havia oferecido
nenhuma lição para ele. Fui para enfrentar o meu medo, lutar a minha batalha,
encontrar comigo. Dei de ombros, como quem diz o óbvio, e acrescentei: “Como
duas velas que se acendem diante da explosão provocada em um mesmo encontro.
Sem você eu também não teria chegado aqui”.
Ajudamo-nos mutuamente. Guardadas as devidas
diferenças, tínhamos trajetórias parecidas de buscas equivocadas, escolhas
erradas, medos, sofrimentos e mudanças de ciclos até o dia do inevitável
encontro. Apesar de mudar o grau e o tom, em essência, é a história de todos
nós. Então, toda crítica ao outro perde o sentido. Por consequência, sem
precisar de palavra, as mágoas arrefeceram e o perdão floresceu.
Não que ele ignorasse, mas sublinhei: “A espada está
em suas mãos, o guerreiro está pronto, existe um combate à espera”.
Eduardo me deu um abraço forte, balançou a cabeça e se
foi. Observei aquele jovem guerreiro de quase sessenta anos indo embora. Antes,
se despediu de cada um dos convidados, sem pressa, como se estivesse em uma
solenidade derradeira. Ele se despedia de si para encontrar consigo. Era ele,
mas era outro. Outra espada, outro guerreiro e um combate inusitado. Partiu
como quem tem um encontro marcado. A vida o esperava.
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